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É à vista ou é a prazo? — analisando uma questão de matemática

  • Foto do escritor: Aline Matheus
    Aline Matheus
  • 13 de nov.
  • 4 min de leitura

A questão a seguir foi adaptada de uma prova de concurso público para professores de Matemática*.

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Renato decidiu comprar um novo celular e pesquisou preços em diversas lojas. Em uma delas, encontrou um aparelho com as seguintes condições de pagamento:

  • A prazo: 20% do valor total deve ser pago como entrada, e o restante em 5 parcelas mensais de R$ 340,00.

  • À vista: o preço corresponde a um desconto de 10% sobre o valor cobrado na condição de pagamento a prazo.

Após comparar as duas opções, Renato optou por pagar à vista. Desse modo, qual foi o valor gasto para comprar o aparelho?

A) R$ 1.700,00

B) R$ 1.912,50

C) R$ 2.078,50

D) R$ 2.125,00 __________________________________________________________________________________

(*Reformulada para fins de análise didática, preservando o problema matemático original.)

Sugiro que você tente resolver antes de seguir com a leitura.

Pronto?

Essa questão é interessante porque mostra que, mesmo quando o conteúdo matemático é elementar, situações contextualizadas podem gerar ruídos e ambiguidades — e, em avaliações, isso pode até invalidar o item.

A situação é bastante plausível no contexto das práticas de consumo. Um mesmo produto pode ter condições diferentes de pagamento à vista ou a prazo. Nesta última modalidade, o preço costuma ser mais alto para compensar o vendedor — tanto pela indisponibilidade imediata do dinheiro, que torna o fluxo de caixa mais complexo, quanto pelo risco de o pagamento futuro não se concretizar.

No nosso problema, temos a informação de que, no preço a prazo, deve-se dar uma entrada de 20% do valor total, mais cinco parcelas de R$ 340,00. E, a meu ver, aí é que está o problema do problema... Qual seria esse valor total, que está sendo tomado como referência? Seria o preço à vista, que chamaremos de V, ou seria o preço a prazo, que chamaremos de P?

A informação seguinte, que define o preço à vista como 10% menor que o preço a prazo, não resolve a dúvida sobre o que, afinal, significava "valor total" na primeira frase.

Uma possibilidade razoável é imaginar que o preço à vista é o valor total do produto, sendo o preço à prazo derivado dele por meio de algum tipo de acréscimo. Nesse caso, teríamos a solução a seguir.

Solução 1 - Preço à vista como referência

ree

Vemos que esse resultado não aparece entre as alternativas da questão... Ué? Será que erramos? Pode conferir os cálculos — eles estão corretos.

O desacordo está na suposição de que o preço à vista seria a referência. Para chegar ao gabarito oficial, é preciso considerar o preço a prazo como referência.

Solução 2 - Preço a prazo como referência

ree

Agora encontramos a resposta entre as alternativas: letra B, que coincide com o gabarito oficial da prova original.

Mas e aí? Qual das duas formas está correta?

Ambas as interpretações me parecem aceitáveis e matematicamente válidas. O ideal, portanto, seria que o enunciado deixasse claro qual valor serve de referência na situação.

Para ser justa com quem elaborou a questão, é plausível argumentar que a expressão "valor total", por aparecer dentro do trecho que define o preço a prazo, tenda a se referir a ele. Além disso, o próprio enunciado do preço à vista reforça essa leitura, ao definir o desconto em relação ao preço a prazo. Ainda assim, isso não basta para eliminar a ambiguidade: o texto não fixa explicitamente qual grandeza é tomada como referência, e essa indefinição permite duas modelagens igualmente coerentes.

Fato é que, no cotidiano, essas ambiguidades são comuns e facilmente resolvidas com uma simples conversa — basta confirmar com o vendedor qual regra de precificação está valendo. Em uma prova seletiva, porém, essa falta de especificação torna a questão inválida, pois ambas as interpretações seriam aceitáveis.

O que isso nos mostra sobre o ensino de Matemática?

A clareza linguística faz parte da competência matemática. Resolver problemas não é apenas manipular números, mas também interpretar situações, formular hipóteses e tomar decisões de modelagem. Inclusive, é importante perceber ambiguidades.

Se, em uma avaliação, a ambiguidade é um defeito, na sala de aula ela pode ser um recurso pedagógico. Problemas como este ajudam os estudantes a compreender que uma equação nasce de escolhas interpretativas. Perguntar “qual é a referência?” ou “de onde vem esse valor total?” conduz o aluno a raciocinar de modo mais consciente.

Modelar envolve fazer escolhas. Ao resolver problemas contextualizados, o estudante precisa definir bases, justificar hipóteses e argumentar sobre suas decisões. Essa explicitação é parte essencial do raciocínio matemático e desenvolve autonomia intelectual.

Por outro lado, avaliações formais requerem precisão conceitual e textual. Questões ambíguas podem gerar respostas corretas sob hipóteses diferentes. O professor, como elaborador ou selecionador de itens, precisa zelar para que um enunciado de múltipla escolha tenha apenas uma leitura possível — ou, se houver mais de uma, que isso seja explicitado.

Essa discussão se alinha ao conceito de letramento matemático previsto na BNCC: usar a matemática para compreender e atuar no mundo, com clareza de raciocínio e precisão de linguagem. Ao lidar com situações ambíguas, o estudante aprende que modelar é escolher — e justificar essas escolhas faz parte do raciocínio matemático.

Em avaliações, essa consciência favorece uma leitura mais crítica e precisa dos enunciados. Em sala de aula, amplia a autonomia intelectual e o olhar crítico diante dos enunciados, transformando a resolução de problemas em uma prática de leitura, argumentação e sentido. PS: Como você interpretaria e resolveria essa questão? Você concorda com minha análise ou tem uma leitura alternativa para defender?


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