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Por que precisamos repensar o ensino tradicional de funções?

  • Foto do escritor: Aline Matheus
    Aline Matheus
  • 23 de set.
  • 5 min de leitura

Quando eu aprendi funções, no 1º ano do Ensino Médio, há cerca de 30 anos, a abordagem foi aquela clássica, possivelmente herdeira do movimento da Matemática Moderna*. Isto é, fui apresentada a uma definição formal de função e à representação por meio de diagramas de Venn. Algo na linha de:

"Função é um conjunto de pares ordenados de números (x, y), de tal forma que a cada valor da variável x corresponda um único valor da variável y."

Daí já se compreende o caráter bastante formal e abstrato da abordagem por meio da qual aprendi função.

O ponto é que, como professores, precisamos deliberadamente ir além daquilo que aprendemos enquanto estudantes da Educação Básica. Precisamos, ao contrário, olhar criticamente para as nossas experiências, mesmo que tenhamos tido êxito na vida escolar. Eu, particularmente, aprendi a noção de função e respondi bem às exigências escolares relativas a esse tema. Mas há dois poréns.

O primeiro porém: sucesso relativo

O primeiro porém é que a forma como eu aprendi não favoreceu que eu transferisse a noção de função para a solução de problemas autênticos, que necessitassem a modelagem de relações funcionais. Isso não foi um problema para mim durante o ensino médio, porque a solução de problemas autênticos simplesmente não me era requisitada. Mas, no ensino superior, sim. Poderia ter sido um fiasco, mas, felizmente, recebi apoio para ampliar minha concepção de função, na mesma medida em que me era exigida uma nova e mais ampla gama de conexões e aplicações dessa noção.

Isso, de cara, já provoca uma primeira reflexão: a noção de sucesso escolar é relativa àquilo que está sendo proposto nas aulas. Se a exigência é meramente procedimental, então um desempenho meramente procedimental será considerado sucesso. Porém, mais importante que o sucesso em relação às notas e ao pragmatismo da vida escolar, é a questão do sentido daquilo que é aprendido. Certamente, uma noção de função mais voltada para a modelagem de fenômenos poderia ser mais significativa.

Aqui cabe perguntar: que tipo de “sucesso” queremos cultivar em nossas aulas? Apenas o domínio de algoritmos e definições, ou a capacidade de olhar para um fenômeno cotidiano — como o preço de um aplicativo de transporte que varia com o tempo e a distância — e perceber que ali está um exemplo de relação funcional?


O segundo porém: dificuldades dos colegas

O segundo porém é que, para a maior parte dos meus colegas, a situação de aprendizagem de funções foi mais problemática do que para mim. E esse problema pode ser examinado à luz do que a ciência já sabe sobre aprendizagem.

O mais consistente consenso científico sobre como aprendemos diz respeito à importância dos nossos conhecimentos prévios. Particularmente em relação às funções, os estudantes, em suas vidas dentro e fora da escola, usualmente acumulam uma ampla coleção de conhecimentos prévios úteis para essa aprendizagem. Saber calcular o preço a pagar no posto de combustível, a depender da quantidade de litros, ou o preço a pagar por uma determinada quantidade de quilos de maçã, dado o preço de cada quilo, e outras situações similares são ótimos pontos de partida para o estudo das funções.

Mas quando nos apressamos em formalizar e algebrizar o estudo do tema, perdemos a oportunidade de fazer tais conexões. É como se quiséssemos ensinar alguém a apreciar música começando pela partitura, sem nunca deixá-lo ouvir a melodia.

Vejam bem: não estamos desprezando a formalização e muito menos a linguagem algébrica, que tem uma função importantíssima para descrever relações funcionais. Mas estamos dizendo que esse não precisa ser o ponto de partida, embora deva ser o ponto de chegada.


Três princípios de aprendizagem que iluminam o tema

Então, o primeiro princípio de aprendizagem aponta que a forma como somos capazes de aprender algo depende da conexão com aquilo que já sabemos.

Um segundo princípio de aprendizagem elencado na literatura especializada é que a aprendizagem conceitual é muito importante e não pode ser negligenciada em nome de um foco exclusivo na fluência procedimental. Uma definição formal seguida do ensino de como se faz (como obter o valor de y correspondente a um dado valor de x, como plotar pontos num gráfico, como achar o contradomínio etc.) não produz aprendizagem com compreensão. E compreensão é fundamental para atribuição de sentido e para transferir o conhecimento para outros contextos.

Outro ponto que precisa ser superado para promover uma aprendizagem mais profunda do conceito de função é trabalhar com suas várias formas de representação: tabular, verbal, numérica, algébrica e gráfica. O predomínio da representação algébrica é um limitador da aprendizagem e, frequentemente, faz com que os estudantes não distingam as noções de função e equação.

Alguém poderia argumentar, com razão, que no ensino tradicional de função também é bastante trabalhada a representação gráfica. Mas, usualmente, os gráficos são trabalhados por meio da plotagem e ligação de pontos, sem conexão com os parâmetros que aparecem na sua expressão algébrica. Isso faz com que a representação seja vista apenas como uma tradução mecânica, e não como uma lente interpretativa.

O terceiro princípio de aprendizagem que podemos usar para examinar a questão é a necessidade de um envolvimento cognitivo real dos estudantes. A aprendizagem é sempre ativa, mesmo que essa atividade seja eventualmente não observável. Assim, uma forma de assegurar aprendizagem é fazer com que essa atividade cognitiva seja deliberada e observável. Os estudantes precisam ser instados a refletir sobre as soluções dos problemas que resolvem, justificar as fórmulas que escrevem, analisar a plausibilidade dos resultados, interpretar as respostas a que chegam etc.

Vale lembrar que a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) já aponta nessa direção ao propor que o estudo de funções se conecte à modelagem de fenômenos, à resolução de problemas e ao uso articulado de diferentes representações. Essa orientação, no entanto, não se realiza automaticamente: dependerá sempre de escolhas curriculares, metodológicas e avaliativas feitas em cada rede, escola e sala de aula. Em outras palavras, a BNCC sinaliza a necessidade da mudança, mas não garante, por si só, que ela aconteça. Eu, particularmente, nas minhas andanças por diferentes contextos escolares, ainda tenho visto certa prevalência desse modelo mais tradicional do ensino de funções.

Para onde podemos ir

Tudo isso aponta para a necessidade de abordar funções de um modo bastante diverso do tradicional, começando com a modelagem de situações conhecidas, passando à algebrização e à produção de gráficos, sempre em conexão com problemas em contextos variados.

Vale lembrar ainda que pesquisas em educação matemática reforçam essa visão. Raymond Duval, por exemplo, argumenta sobre a importância de articular diferentes registros de representação (verbal, algébrico, gráfico, tabular) para promover a compreensão. Já Kilpatrick, Swafford e Findell, no clássico Adding It Up (2001), mostram que o equilíbrio entre fluência procedimental e compreensão conceitual é indispensável para a aprendizagem matemática.

E aqui volto à sala de aula: o que aconteceria se, em vez de começar pelo diagrama de Venn, começássemos pelo posto de gasolina, pelo aplicativo de transporte, pela conta de energia elétrica, pelo tempo de download de um arquivo? O que aconteceria se pedíssemos aos estudantes para levantar hipóteses, esboçar gráficos, discutir plausibilidade, antes de formalizar a linguagem algébrica?

Não é uma aposta no escuro. Há uma vasta literatura sobre ensino e aprendizagem de matemática que pode nos apoiar. Vale a pena experimentar, não vale? *Para quem não sabe, o movimento da Matemática Moderna foi uma iniciativa mundial, especialmente forte nas décadas de 1960 e 1970, que buscava atualizar o ensino da matemática com base em estruturas abstratas e linguagem de conjuntos. A intenção era dar rigor e modernidade ao ensino, mas muitas vezes o resultado foi um distanciamento excessivo da realidade dos estudantes, que se viam diante de símbolos sem conexão com suas experiências. Hoje, reconhecemos tanto os avanços quanto os limites dessa herança.

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