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Pra que eu vou usar isso, professora?

  • Foto do escritor: Aline Matheus
    Aline Matheus
  • 28 de out.
  • 4 min de leitura

Entre o utilitarismo e o sentido da aprendizagem


A pergunta que dá título a esse post é uma pedra no sapato de muitos professores de matemática. Isso porque essa pergunta é encarada como sendo de natureza utilitarista.

Convém situar que o utilitarismo é uma teoria ética — defendida por filósofos influentes como John Stuart Mill (1806–1873) — que define a correção de uma ação por suas consequências, priorizando a máxima de gerar o maior bem-estar possível para o maior número de pessoas. Uma ideia que, em princípio, faz muito sentido, mas cujas interpretações podem conduzir a situações indesejáveis ou mesmo eticamente inaceitáveis, possivelmente deturpando as boas intenções da formulação original.

Não vamos nos alongar demasiadamente numa análise das críticas ao utilitarismo, mas vale examinar como essa ideia, quando distorcida, pode corroer o sentido buscado na aprendizagem escolar.

O que poderia, afinal, gerar o maior “bem-estar” para o maior número de crianças e jovens que estudam Matemática? Aliás, o que seria esse bem-estar? Seria prazer? Seriam garantias de uma vida material razoável? Abastada?

Facilmente, podemos descambar para a ideia de que apenas tem valor aquilo que é divertido ou aquilo que teria consequências materiais muito palpáveis para os indivíduos, num futuro calculável.

Ora, nem sempre os processos de aprendizagem são divertidos. Não que devam ser sofridos — longe disso. Mas a diversão e o entretenimento não são as únicas chaves de atribuição de sentido à existência humana. Gostamos de coisas que não necessariamente são divertidas: ver um filme triste, ler uma poesia que fala de ideias muito abstratas, viver os mistérios da fé, prestar solidariedade a alguém que passa por uma situação difícil, dedicar-se a uma causa, trabalhar, levantar peso na academia... Essas experiências não coincidem, necessariamente, com diversão.

Da mesma forma, nem sempre os conteúdos matemáticos ensinados nas escolas terão consequências materiais palpáveis na vida dos estudantes, seja no presente, seja no futuro. Embora existam pesquisas que associam um maior nível de conhecimento matemático a uma melhor situação econômica na vida adulta — como mostra este estudo do IPEA — não é possível determinar, para cada estudante, o papel exato que esses conhecimentos terão na sua vida.

Meme popular na internet, ironizando a aprendizagem da fórmula de Bháskara
Meme popular na internet, ironizando a aprendizagem da fórmula de Bháskara

Sim, a maioria de nós não vai usar a fórmula de Bháskara no dia a dia. Mas certamente uma parcela vai. Do mesmo modo, a maior parte de nós não usa diretamente os conhecimentos históricos sobre a Queda da Bastilha, ou o conhecimento sobre as contribuições dos povos mesopotâmicos, sobre os movimentos literários ou sobre a composição química do sal de cozinha... A vida pode ser vivida apenas com água, comida e abrigo — mas, nesse caso, com menos humanidade. (Me lembrei da música dos Titãs: a gente não quer só comida, a gente quer comida, diversão e arte...”)

A escola transmite conhecimentos culturais, que nos tornam mais conscientes de quem somos e de como chegamos até aqui. Ela constrói um entendimento de nós mesmos não apenas enquanto indivíduos, mas enquanto povo — considerando nossa cultura e história local — e também enquanto humanidade. E a Matemática é parte dessa cultura: um bem cultural que precisa ser acessado pelas novas gerações.

Claro que a ela também tem aplicações práticas. Afinal, toda matemática que temos nasceu de perguntas humanas — algumas de natureza bastante pragmática, outras mais abstratas ou filosóficas. Compreender o sentido dos conteúdos matemáticos pode envolver tanto conhecer suas aplicações como conhecer as perguntas que outros seres humanos já se fizeram, para as quais esses conteúdos são respostas.

Por exemplo, lembro-me de quando aprendi logaritmos no Ensino Médio. Eu não tinha dificuldade procedimental com o assunto, mas ele fazia muito pouco sentido para mim. Assim que entendi que um logaritmo é um expoente, fiquei me perguntando por que alguém inventou uma palavra nova para algo que eu já conhecia.

Note: o logaritmo é um expoente.
Note: o logaritmo é um expoente.

Quando finalmente, já na graduação, conheci a história dos logaritmos, eles passaram a fazer sentido para mim. Mais do que isso: passei a amá-los, enquanto marca da engenhosidade humana para lidar com cálculos complexos numa época em que não existiam calculadoras — assunto para outro post.

Notem: os logaritmos têm aplicações práticas diversas — na física, na geologia e em tantos outros campos. Mas, mais do que saber para que eu ia usar isso (se é que iria), o que deu sentido ao conteúdo foi compreender por que e para quê outras pessoas inventaram esse conceito.

Particularmente, me parece que perguntas como “onde vou usar isso?” ou “pra que tenho de aprender isso?” são, muitas vezes, um pedido de socorro. Elas indicam que os estudantes não estão vendo sentido na aprendizagem — e, quando não vemos sentido no que fazemos, o esforço para aprender parece um desperdício de energia, coisa que nosso cérebro detesta e procura evitar de todo modo.

O equívoco está em supor que essa falta de sentido precise ser preenchida com respostas utilitárias. Às vezes, a formulação da pergunta é apenas a maneira que uma criança ou um jovem encontrou para expressar seu incômodo — ainda que deslocada em relação ao que realmente interessa.

A pergunta do título incomoda os professores porque eles supõem que deveriam mostrar aplicações práticas imediatas da Matemática que estão ensinando. Nem sempre isso é possível. Então, surgem outras fórmulas, como “você vai precisar disso no vestibular” ou “vai precisar quando crescer”. Ora, via de regra, não sabemos quem vai precisar do quê, nem como será a vida de cada um. Mas podemos — e devemos — mostrar como a Matemática nasce das perguntas das pessoas que viveram antes de nós e das perguntas que ainda nos fazemos hoje.

Talvez possamos responder à pergunta “pra que eu vou usar isso?” convidando o estudante a descobrir que perguntas, de ontem e de hoje, deram origem a esse conhecimento — e que perguntas novas ele pode gerar.

2 comentários


Renée Carvalho
31 de out.

Excelente reflexão!! Acho que o aluno, ao fazer essa pergunta, está na verdade tentando encontrar um significado naquilo que está aprendendo. E às vezes, o que falta não é uma aplicação prática imediata, mas uma conexão com a curiosidade humana que deu origem àquele conhecimento.

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Aline Matheus
02 de nov.
Respondendo a

Muito obrigada, Renée! É isso aí: sentido é mais amplo que aplicação utilitária. :)

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