Estes dias, me deparei com um vídeo com uma fala linda sobre o erro, da escritora portuguesa Matilde Campilho:
"Se alguma coisa se atravessa no meu caminho, isso destrói a construção? Ou é parte dela? [...] O erro é construção."
Talvez por isso, nesta semana tenho pensando muito sobre o lugar e o valor do erro na matemática e na vida, de modo geral. O que e quanto perdemos ao colocar a ausência de erros como meta? No âmbito da aprendizagem e do desenvolvimento cognitivo, o pesquisador norte-americano Lee Shulman nos dá uma pista, neste vídeo aqui. (Se tiver 7 minutinhos, assista na íntegra, que é maravilhoso! Mas, se tiver só 2 minutos, veja o que ele fala especificamente sobre o erro, a partir de 4:08.)
Viver evitando o erro é viver evitando a criatividade, a autenticidade e a inovação. Quanto das dificuldades dos nossos estudantes na resolução de problemas matemáticos não vêm justamente do desconforto de ser exposto a situações que lhes exigem pensar por conta própria, correndo riscos - geralmente, num ambiente que premia o acerto e toma o erro como fracasso. E, do outro lado, quantos professores não acabam evitando propor aos seus estudantes problemas autênticos, por causa do mesmo desconforto com o erro? O resultado desse estado de coisas, infelizmente, é a perda de sentido último da prática matemática.
Uma vez, quando lecionava matemática para o 7º ano de uma escola de São Paulo, eu ensinei aos estudantes como construir uma reta perpendicular a uma reta dada, usando régua e compasso. Eles praticaram um pouco e, então, propus que, usando o que tinham acabado de aprender, eles construíssem um quadrado de lado 5 cm, para entregar.
Eu não fazia ideia da porta que eu tinha aberto! Na minha cabeça de especialista, a coisa toda era muito simples. Eu imaginava que eles fariam algo como isto:
Traçariam um reta, na qual marcariam um segmento AB de medida 5 cm.
Traçariam uma perpendicular à reta passando por A, outra passando por B.
Marcariam 5 cm em cada uma das perpendiculares traçadas, num mesmo semiplano definido pela reta AB, obtendo os pontos C e D.
Uniriam C e D e... voilà! Um quadrado.
Vejam que dei uma medida fixa, porque achei que trabalhar com uma medida qualquer e com o transporte de segmentos poderia conferir maior abstração à atividade, tornando-a mais difícil nesse primeiro momento. Mas eu nunca imaginei que eles enfrentariam outros desafios ou que inventariam outras formas de construção... Para mim, parecia um exercício. Mas, para eles, felizmente e por acaso, foi um problema - no melhor sentido do termo: algo aberto, onde eles podiam ser criativos!
Diversos alunos - incluindo os mais entusiasmados com a matemática - me entregaram construções como a seguinte. Nessas construções, eles partiam do segmento AC, que media 5 cm:
Não era o que eu esperava, mas seria uma construção correta? A olho nu, para muitos, parecia com um quadrado. Porém, para um olho mais treinado como o meu, parecia meio achatado. Projetei e discuti a construção com a turma: o que foi feito? Como podemos saber se deu certo, se realmente isto é um quadrado?
Vou resumir a discussão a seguir.
A sugestão deles foi medir com a régua para saber se era um quadrado. Fizemos isso e a primeira constatação foi que os lados IJ e EG realmente mediam 5 cm, mas não os lados IE e JG - estes eram menores:
Obviamente, eles queriam saber: por que não deu certo? (Ah, que pergunta maravilhosa!) E digo que isso ocorreu "obviamente" porque é realmente o que costuma acontecer quando qualquer ser humano tem a chance de se engajar em algo criativo. Criamos? É nosso, temos interesse! Após um tempo de discussão coletiva, alguém enxergou o seguinte: "o segmento AE mede 5 cm, porque é raio da circunferência de centro A passando por C. E o segmento AC foi feito medindo 5 cm. Então, IE não poderia medir 5 cm mesmo, teria de ser menor." Outro perguntou: mas por quê? A explicação que o primeiro elaborou foi mais ou menos assim: "Imagina que o segmento IE seja um elástico, preso lá em cima, no E. Daí você quer levar o I lá no A. Vai ter de esticar, não vai?"
Eles se sentiram satisfeitos com esse argumento. Então, seguimos discutindo sobre se dava para ter certeza de que, pelo menos, os ângulos eram mesmos retos (e eram!). E, em seguida, sobre como poderia ser construído um quadrado de fato. E, nesse ponto, dei algumas sugestões, para que avançassem mais brevemente para uma construção eficaz. Pra mim, já tinha valido! Foi uma aula toda de atividade matemática autêntica e foi muito proveitosa!
Por causa de um erro criativo, eles exercitaram a capacidade de visualização, a argumentação e, ainda, descobriram (mesmo sem saber ainda esses termos) que o cateto é sempre menor que a hipotenusa.
Até a próxima!
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