Geralmente, diz-se que os professores precisam ser formados adequadamente para que possam implementar as diretrizes curriculares. Para aqueles que atuam na Educação, essa frase dispensa maiores explicações, por sua obviedade. Mas, aqui, gostaríamos de explorar a relação entre diretrizes curriculares e formação de professores noutro sentido: as diretrizes curriculares podem ser usadas para aprofundar o conhecimento dos professores?
Em seu livro "Saber e ensinar matemática elementar", a pesquisadora chinesa Liping Ma procura investigar a disparidade de desempenho matemático entre alunos americanos e alunos chineses, com ampla vantagem para os últimos. Deixando de lado diferenças culturais entre os dois países, ela compara a abordagem de ensino de professores americanos e chineses, em quatro diferentes cenários. Essa comparação dá diversas evidências de que o êxito dos alunos na aprendizagem da matemática depende, em grande medida, de que os professores tenham um conhecimento profundo daquilo que ensinam. Ma estabelece, assim, a noção de CPMF (não, nenhuma relação com o famigerado imposto brasileiro de algumas décadas atrás!). A sigla, aqui, significa conhecimento profundo da matemática elementar, que Ma caracteriza por meio dos seguintes atributos inter-relacionados:
Conectividade: capacidade de estabelecer conexões entre diferentes temas, procedimentos, algoritmos e até subdomínios matemáticos;
Perspectivas múltiplas: capacidade de abordar um mesmo assunto por várias perspectivas, inclusive comparando-as;
Ideias básicas: clareza acerca das ideias matemáticas que fundamentam e apoiam as demais;
Coerência longitudinal: visão geral do currículo e da progressão da aprendizagem, não apenas do ano em que lecionam.
Mas como é que os professores podem desenvolver o CPMF? Entre outros fatores, Ma destaca o estudo sistemático e coletivo do que os chineses chamam de zuanyan jiaocai – termo que pode ser entendido como currículo, incluindo tanto as diretrizes curriculares como sua interpretação pelos materiais didáticos.
Como, atualmente, no Brasil, é a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) que deve pautar os currículos das escolas e redes, então, de acordo com a tese defendida por Liping Ma, uma das formas de promover O CPMF entre os professores brasileiros que ensinam matemática seria estudar e discutir esse documento.
Aqui cabe uma observação. Muitos educadores simpatizam com a BNCC, vendo nela um trunfo para promoção da equidade na educação brasileira. Outros, têm ressalvas ao documento por diversas razões: por considerarem que ele é muito prescritivo, por razões políticas e ideológicas que cercaram sua elaboração e homologação, por divergências com relação às escolhas teóricas que pautaram o material final etc. De fato, a BNCC – como qualquer outra diretriz curricular – é o projeto que acabou por se impor em uma disputa entre diferentes visões e concepções; não representa um consenso absoluto. Mas o dissenso parcial em torno do documento não impede que seu estudo contribua para promover o CPMF entre os professores que ensinam matemática.
Vamos a um exemplo? A habilidade a seguir é uma das aprendizagens estabelecidas pela BNCC para os alunos do 1º ano do Ensino Fundamental em Matemática:
(EF01MA08) Resolver e elaborar problemas de adição e de subtração, envolvendo números de até dois algarismos, com os significados de juntar, acrescentar, separar e retirar, com o suporte de imagens e/ou material manipulável, utilizando estratégias e formas de registro pessoais.
Essa habilidade está descrita dentro da unidade temática “Números”, ligada ao seguinte objeto de conhecimento:
Problemas envolvendo diferentes significados da adição e da subtração (juntar, acrescentar, separar, retirar).
Em que medida o professor, ao ler essa habilidade e esse objeto de conhecimento, partilha com o especialista que os redigiu a mesma concepção de resolução de problemas? Qual é o conhecimento de Didática da Matemática que moldará a forma como o professor entende e vai em busca desse objetivo? Será que o professor conhece, por exemplo, a noção de campos conceituais, cunhada por Gérard Vergnaud, que embasa a forma como o objeto de conhecimento foi redigido? Caso conheça essa noção, será que se orienta por ela em seu trabalho com o tema ou será que se vale de alguma outra referência? Seria essa outra possível referência apenas empírica ou estaria ela atrelada a alguma teoria didática?
E os livros didáticos? Como interpretam e operacionalizam essa habilidade e esse objeto de conhecimento? Em que medida ajudam os estudantes a alcançar os objetivos pretendidos em toda a sua envergadura?
Quantas perguntas a serem exploradas a partir de uma única habilidade contida no documento! Certamente, explorá-las e discuti-las entre pares, tanto em cursos formais como no cotidiano escolar, pode contribuir não apenas para a implementação da BNCC nas escolas, mas para ampliar o conhecimento docente sobre a matemática a ser ensinada e sobre os aspectos didáticos dessa matemática.
Do ponto de vista daqueles que respondem pela formação inicial e continuada de professores, a BNCC pode ser uma oportunidade!
Referência:
MA, Liping. Saber e ensinar matemática elementar. Trad. Sala Lemos e Ana Sofia Duarte. Lisboa: Gradiva, 2009.
Para saber mais sobre o livro da Liping Ma:
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