Começo este post com um relato pessoal, a fim de que ele possa ilustrar de que maneira o cotidiano oferece oportunidades para estimular o interesse matemático das crianças desde cedo.
Tenho uma filha de 3,5 anos. Faz um tempinho, ela descobriu o lugar onde guardo bijuterias e se apaixonou pelos meus anéis. Pediu para brincar com eles e eu deixei, mas, institivamente, temerosa de que ela os perdesse por aí, resolvi contá-los, na frente dela. Ainda, como ela não parava de mexer nos anéis enquanto eu tentava contar, eu fui tentando organizá-los rapidamente, em fileiras de cinco, pra não me perder. Pronto! Ela imediatamente se interessou pelo padrão e pela contagem, de modo que os anéis viraram apenas um meio (brilhante e colorido!) para interagir com quantidades.
Vale explicar em que estágio minha filha está com relação aos números. Ela já conta bem até dez e já vai além, mas de forma ainda irregular. Ela usa números pequenos e grandes, com muita "liberdade poética" (kkkk), para exprimir sua percepção sobre diferentes grandezas: sua idade e a de outras pessoas, velocidades (afinal, ela almeja ser rápida como um guepardo!), horários da sua rotina, dias do mês (que a professora pinta no calendário da escola todos os dias), os números das casas (porque a fizemos decorar nosso endereço) etc.
Voltando aos anéis, contamos vinte. Então, ela pediu que eu fechasse os olhos e escondeu alguns anéis. Eu me fiz de surpresa e indignada com o sumiço, o que a fez achar graça... Mas ela ficou encantada mesmo foi quando consegui descobrir que faltavam quatro aneis: "como você sabe?" Eu disse que a matemática nunca falha: contei os aneis restantes, até dezesseis, e mostrei com os meus dedos, que faltavam quatro para chegar ao vinte.
Ela entendeu? Suponho que não (pelo menos, não completamente), mas isso a instigou. Tanto que tivemos de repetir a brincadeira muitas e muitas vezes naquele dia, até "sumirem" todos os aneis. E, depois, em muitos outros dias, essa virou uma das brincadeiras preferidas.
Acho que tem algo importante aí. O problema colocado por ela, "como você sabe?" tem uma resposta que ainda não lhe é de todo acessível. Mas o fato de que ela o tenha formulado dá uma pista de que ela pode explorá-lo - o que faz por meio da repetição da brincadeira. Percepções e habilidades importantes são construídas assim, brincando, sem compromisso com a resposta correta. Mais ainda, dessa forma, a criança pode começar a estabelecer uma visão positiva acerca "dessa tal de matemática". Esses dias, durante a brincadeira, ela perdeu um anel e me disse "vamos contar, mamãe, porque a matemática nunca falha".
Não tenho ilusões: isso é só um começo. Ainda temos uma longa jornada, durante a qual a matemática vai se transfigurar muitas vezes, em muitos contextos, incluindo o contexto escolar. E, em cada etapa, será necessário cultivar o interesse matemático da minha filha de maneiras diferentes. Sem garantias.
Mas os pesquisadores alertam que vivências como a que relatei favorecem um bom começo. Segundo Boaler (2019),
"Ideias matemáticas que podem parecer óbvias para nós - como o fato de podermos contar um conjunto de objetos, movê-los e depois contá-los novamente e obter o mesmo número - são fascinantes para crianças pequenas. [...]
Existem muitos livros repletos de ótimos problemas matemáticos para crianças, mas acredito que o melhor tipo de incentivo que pode ser dado em casa não envolve mantê-los sentados e dar-lhes mais atividades matemáticas ou comprar livros matemáticos. O que precisamos fazer é prover contextos nos quais as ideias e as questões matemáticas das próprias crianças possam surgir e seu pensamento matemático seja validado e encorajado."
Os contextos favoráveis para que os pais explorem padrões e ideias matemáticas com as crianças nem precisam ser elaborados e planejados. A vida cotidiana é naturalmente cheia de oportunidades para isso, bastando que os pais estejam atentos para aproveitá-las e que se disponham a ouvir e partilhar ideias matemáticas.
Referência:
BOALER, Jo. O que a matemática tem a ver com isso? Como professores e pais podem transformar a aprendizagem da matemática e inspirar sucesso. Trad. Daniel Bueno. Revisão Fernando Carnaúba. Porto Alegre: Ed. Penso, 2019.
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